quinta-feira, março 22, 2012

O desencobrimento da Terra (monólogo)


Personagem: mulher que ora se representa a ela mesma, ora simboliza a terra portuguesa, abandonada pelos que partiram e esperando o seu regresso. As frases destacadas em negrito poderão ser acompanhadas por um côro, pois este monólogo exterior é um diálogo interior.

Todos eles partiram e eu fiquei. Fiquei aqui, nesta terra que me parecia imensa, infinita. Agora sei que é pequena, insignificante como um grão de areia ou um torrão que aperto nos meus dedos e esmago e não é nada. Todos ou quase todos eles partiram para o de lá dos mares, à procura doutros sóis, doutras luas e doutras mulheres. 
            Aqui semeio, aqui planto e colho, o pão que darei aos meus filhos que pari. Também eles me prendem, me impedem de partir além, à aventura pelos mares. Pedem-me o pão, não me pedem a água salgada do sonho marítimo, não me pedem que arrisque a minha vida nem querem que o faça, como fez o pai, como fez o avô que morreu no mar. Coisas bem mais prosaicas tenho que lhes dar, se sou mãe e se mulher me vejo. 
            Choro o meu marido que partiu p´ró mar, e eu aqui. E eu aqui, semeando e colhendo e comendo o pão, o pão salgado das minhas lágrimas mas não salgado das ondas que imagino e sonho e nunca vi, num sonho de aventura. 
            Esta terra, portugal chamada, prisão minha e teia de que sou a involuntária aranha, de que sou a aranha e a mosca, presa eu na rede dos meus próprios gestos.  
            Procriarei, criando aqui aquilo que todas criam, mesmo as fêmeas dos bichos: filhos e filhas. Rapazes que partirão para longe atrás dos outros que já foram, que morrerão talvez no fundo do mar antes de chegarem ao sonho e à aventura.  
            Salgadas, como as do mar, as minhas lágrimas, águas da minha alma, serão o fruto amargo do meu julgar o tempo.
             Esta terra que tão grande parecia na minha inocência, tão pequena a sei agora no meu limite de mulher...desencoberta. 
            Sonho e desespero e choro por todos aqueles que não são aqui, onde deviam ser, por mim que me julgava eterna e útil mas sem sina me vejo. Mãe de todos, telúrica, genésica de impérios a fazer, aqui me vejo reduzida a nada. 
            Pátria talvez perdida eu sou, mátria talvez esquecida, gero e gerando espero o que já nem sonhar ouso. De fugaz centelha me anima a Esperança às vezes, pátria sem homens que fiquei, mátria desencoberta, portugal chamada, perdida imaginada apenas e lembrada nas minhas noites e dias de infindável solidão. 
           Aqui me vêem! Nem já de terra e de ervas mas de pedra, erigida em estátua que ninguém procura, tombada na curva do caminho. Bandeira! Bandeira sem vento que a agite, sem cor que a simbolize no porvir. 
            Imagino-me pedra, indócil e vazia. 
           No meu amanhecer esperarei ainda: partiram os meus filhos, os meus amos, os meus fados e os meus todos amores. 
            Vazia, desértica até mesmo de mim, sem destino nem viagem que me espere, aguardo a serena morte de quem já não crê. O desespero me agita. Em ondas de desejo, desejo tudo e nada ouso.
            Sou aquela mulher e aquela mátria que ninguém ama já. Sem deuses, sem homens, sem gente, com a paciência de quem é terra aguardarei o regresso: a fuga de todos os lugares para a pátria-mãe, em séculos a vir. O retorno do desânimo que não é esperança já, antes começo de algo que não quero. 
            Retornarão um dia, em lama transformados de tanto querer ser água esta terra. Encherão o meu solo de imaginários lugares.  
           Contemplando-me, verão o que recordam, sonharão o que perderam. Vendo-me, verão outra.  
            Não só a que deixaram com saudade e ânsia, mas também as que encontraram lá longe e não existem mais, assim como as recordam: o império que perderam.
            O que de tudo isto restará serão eternas águas, desabitadas sempre, hostis à amestragem dos que as desejaram possuir, oceanos vazios de gente.  
            Água eu também gostaria de ser, a nunca possuída nem completamente achada. Marés transitórias que procurarão também no espaço, na lua distante e misteriosa, que de outros sonhos ocupará o meu espaço real. No espaço inconhecido sonharão a aventura outra vez, o sonho e o desejo. 
            E eu aqui, durante séculos terra despojada, aquela que em saudades recordaram, aquela que abandonada fica, aquela que ninguém ama. 
            Esperarei para sempre. Aqui, à beira do oceano, transbordante de desejos que não chegam até mim, mátria esquecida, terra desencoberta. 
            O meu não ser além é o espelho quebrado em que me miram, feita eu em pedaços de não ser outro lugar, mais ao norte ou mais ao sul, segundo a rota e o desígnio das suas intenções.
          Mátria mais ousada ou pátria mais fêmea ainda me desejariam, sempre diferente daquilo que fui, daquilo que serei nem posso ser.  
            Vendo-me, verão outra, sempre outras me verão sem me aceitarem como eu sou e fui, sem me verem a mim. 
            Mátria esquecida, terra-mãe desencoberta, contudo me sei desenhada nos mapas como qualquer outra. Os mapas me desenham e me apontam, naturalmente, à superfície da esfera que rola pelo espaço infinito: lugar nenhum, dos meus desencontrada, aqui me vejo reduzida a nada.

Lisboa, 30 de Abril de 1997
Graciete Nobre

Texto já publicado na revista TRIPLOV

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